Regenerar é mais que sustentar

Como dar os primeiros passos rumo à regeneração

Texto por Coral Michelin // Editorial autoral AROLab

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É engraçado como as coisas andam hoje em dia — e talvez sempre tenha sido assim, mas só percebemos agora, por conta da concomitância das redes de comunicação… O fato é que certos assuntos vão se desenvolvendo em paralelo, e não em um continuum como seria de se esperar. As ondas acontecem simultaneamente.

Falo aqui sobre o mais novo assunto do universo ligado à ecologia, a onda da regeneração. Há uma nova pauta em discussão sem que tenhamos absorvido a anterior, a sustentabilidade — e creio que isso ocorre por causa da incapacidade da sustentabilidade em endereçar os desafios enfrentados atualmente. A questão é que temos essa simultaneidade: alguns discutem a sustentabilidade, outros a regeneração e ainda outros a Terra plana. Nossa surrealidade diária.

Coloco isso dessa forma, pois seria normal de se esperar que à sustentabilidade sucedesse a regeneração, uma vez que regenerar é bem mais que sustentar. Contudo, os assuntos acontecem ao mesmo tempo e tem muita gente ainda remando em onda errada ou em onda pequena demais para a urgência que estamos vivendo. Como todos sabem, a emergência climática é real, mas os países estão fazendo pouco e as grandes empresas do mundo fazem menos ainda para reverter seus efeitos. A Agenda 2030 já era: uma análise nem muito profunda no que sai de dados e reportagens sobre clima deixa isso bem claro, ninguém está fazendo o suficiente e chegaremos em 2030 ultrapassando a marca dos 2oC de aquecimento global. Assim sendo, não é mais uma questão de “se” haverão mudanças climáticas e sim de “qual intensidade e magnitude” elas terão.

Então, embora essas ondas ocorram concomitantemente, nós precisamos de muito mais pessoas surfando na regeneração — quanto mais gente souber desse assunto e estiver disposto a fazer um processo regenerativo, melhores as nossas perspectivas de futuro! Pois, como diz Donna Haraway [1], importa que mundos o mundo cria (a frase original em inglês é bem mais divertida: it matters what world worlds world). Precisamos criar mundos regenerados! 

Vem comigo que eu te mostro o que conheço do caminho até aqui.


regenerar > sustentar

Daniel Wahl, defensor das culturas regenerativas [2], é uma das pessoas que dizem que sustentar não é mais suficiente, é preciso regenerar. Concordo! 

Olhando para o significado e origem de cada palavra [3], vemos que “sustentar” é, simplesmente, dar sustento, apoiar, impedir que caia. E que depende muito de um complemento ou um contexto para transmitir uma mensagem completa. Sustentar pode ser, por exemplo, dar de comer; ou defender certos argumentos; ou permanecer resistindo em um flanco de batalha.

O termo sustentabilidade quer dizer “aquilo que é passível de ser sustentado”. Quando nós usamos “sustentabilidade” no âmbito ecológico, ao que estamos nos referindo? Que significados estamos evocando, o que dizemos que é passível de sustento? Veja, o termo é bastante vazio por si só. Como disse, depende de um complemento. E no nosso mundo, ele vem na forma de “desenvolvimento”: o famoso desenvolvimento sustentável.

Desenvolver, da origem latina des-en-volvere, pode ser entendido como aquilo que impede o regresso, impede a volta para dentro, isto é, força o progresso contínuo, o crescimento infinito. Assim, “desenvolvimento sustentável” é um termo completo em seu significado, e diz que o progresso contínuo é passível de ser apoiado. O que é um absoluto contrassenso, é um oxímoro. É impossível sustentarmos um progresso contínuo e crescente ad infinitum, temos apenas UM planeta, uma única fonte de “recursos”. 

O que não impede que países inteiros se comportem como se a Natureza fosse inesgotável e existisse apenas para eles. Por exemplo, os Estados Unidos, meca do American Dream, consome duas vezes e meia o seu território em recursos para se manter. Eles importam um país e meio de recursos que não produzem, para manter o seu nível de consumo — isso é “progresso infinito”, dentro dessa lógica: alguém está sendo explorado para que outro alguém alimente a falácia do desenvolvimento sustentável. 

E regenerar? Vocábulo também de origem latina, que traz como significado “revivificar” e “reproduzir”, ou seja, dar nova vida, reviver, dar vigor. Não é muito melhor?! Então, bem, começando pelo significado puro das palavras, “regenerar” contribui muito mais com a ecologia do que “sustentar”. Para além dos significados, no âmbito das práticas efetivas ambos também se distinguem. Enquanto a sustentabilidade está ligada à “deixar de prejudicar”, ou seja, deixar de poluir os rios, de desmatar as florestas, de corroer as montanhas com químicos nocivos em busca de mineral; a regeneração pressupõe ir além. Busca não apenas cessar o impacto negativo causado pela ação humana, como também retribuir com o fomento à vida – do rio, da floresta, da montanha. É, efetivamente, ir além de sustentar e, por isso, dizemos que regenerar é mais, é maior que sustentar. Regenerar é entender que estivemos causando dano por muito tempo e que precisamos agora reverter esse problema: não basta deixar de derrubar árvores, é necessário plantá-las, às centenas, senão aos milhares.

Regenerar é um processo que começa consigo

A regeneração, como movimento ecológico, como essa onda que está vindo banhar e lavar nossas almas, deve começar com o nosso mais íntimo “Eu”. Com nossa visão de mundo, nossos valores. Pois, veja, existem empresas corroendo montanhas inteiras, porque existem também pessoas dispostas a comprar, todo ano, novos aparelhos que usam os minérios que delas são extraídos. Se “Eu” me enxergo superior à Natureza, como se “Ela” me servisse, “Eu” não vejo problema em carcomer o que quer que seja, de peixes a mares inteiros. O Mar de Aral, por exemplo, já está quase totalmente extinto. 

O primeiro passo desse processo, portanto, é em nosso interior: quem “Eu” sou, nesse mundo? Qual papel que “Eu” desempenho aqui? Quais os males causados, com as escolhas que faço? Quantas vidas estão sofrendo ou sendo perdidas com essas escolhas? Como as ações desse “Eu” desencadeiam outras ações que, ao fim, contribuem com a emergência climática que ameaça extinguir a espécie humana? Aliás, estamos vivendo a sexta extinção em massa das espécies que conosco dividem a Terra. Então seríamos apenas mais uma espécie, num total que chega a 25% dos seres vivos do mundo, sendo apagados da existência. 

Eu faço com meus alunos um exercício que tem se provado bastante eficaz no que tange essa transformação pessoal. No primeiro semestre das graduações em Design de Produto e Serviço, Design de Moda e Design Gráfico e Digital do IED-SP, eu solicito que eles adotem uma planta, logo no comecinho das aulas. A tarefa consiste em criar e preencher um diário semanal da planta, que deve receber um nome próprio: como ela está sendo tratada, o que recebeu de alimento, quais reações expressa… No final do semestre os diários são entregues e frequentemente o relato final da experiência conta sobre a transformação sentida nessa relação com outro ser vivo, não-humano. Ser responsável por algo tão passivo, tão diverso e tão incrível como uma planta [5], costuma despertar o que chamamos de interdependência

Esse conceito tem uma base bastante expressiva nas filosofias orientais. O Budismo Vajrayana, ao qual sou ligada, e que é o budismo de Sua Santidade o Dalai Lama, ensina que todos os seres estão interconectados [4]. Isto é, que não existe um único fenômeno independente na existência, tudo depende de tudo para existir e, por esse motivo, toda vida tem o mesmo valor, da menor formiga à maior baleia; dos fungos às savanas, tudo desempenha seu papel nessa dança da vida. Se você gosta de pensamento sistêmico, vale saber que essa é uma de suas raízes. 

Desse modo, “Eu” é um ser interdependente, ou seja, dependemos completamente de tudo que nos cerca: do ar, da água, dos ventos que trazem a chuva, das árvores que fornecem o vapor que forma a chuva, da terra que nutre a árvore e que também me dá de comer. Eu e você dependemos de tudo isso, e mais das pessoas que fazem as cidades onde vivemos funcionarem, do gari à professora, e também das pessoas que nos dão amor e que de nós recebem amor. Amor é vida. 

Quando entendemos quão inextricavelmente conectados estamos, com toda essa maravilhosa, diversa e complexa Natureza, que fazemos parte dela, desperta nesse “Eu” uma profunda gratidão e um amor genuíno pela vida, pelos seres que dividem a vida conosco. Começamos a sentir uma vontade de não causar sofrimento aos nossos irmãos e irmãs. Depois passamos a querer protegê-los e, depois, sentimos uma necessidade profunda de dar a vida de volta que estivemos roubando com nossas decisões egoístas. Passamos a fazer melhores escolhas, que levam em consideração as nossas necessidades, e também as necessidades dos seres que garantem o nosso sustento. Aqui sim, está um bom uso desse termo: “sustentar” como um “garantir a vida”, considerando a todas e todos amorosamente. 

Outra coisa engraçada é que, além de sermos parte da Natureza de verdade, todos nós somos feitos das mesmas moléculas, tanto aqui na Terra como nas estrelas. Somos feitos da mesma matéria, e todos dependemos uns dos outros, do mais microscópico ser, ao mais vasto universo.

Você está pronto/a/e para esse processo regenerativo? Aqui te deixei o primeiro passo. Nos próximos textos trarei um pouco mais desse percurso, para que possamos navegar juntas, juntos e juntes rumo à regeneração. 😉

Coral Michelin

Designer ecossistêmica, designer estratégica e pesquisadora.

É a partir deste texto, escrito por Coral Michelin, que apresentamos o #AROlab, um laboratório de pesquisa, consultoria e criação de moda. Juntos podemos fomentar o mercado criativo, impulsionar a pesquisa em moda e comportamento, desenvolver jovens profissionais, estimular marcas independentes e incentivar o ecossistema de moda local.

NOTAS:

[1] Donna Haraway: Staying With the Trouble: making kinsin the Chthulucene (2016)

[2] Daniel Wahl: Design de Culturas Regenerativas(2020)

[3] Foram usados, para todos os significados apresentados, o Dicionário Houaiss e o Dicionário Etimológico de Antônio Geraldo da Cunha (2010)

[4] Existem muitos livros, hoje em dia, de grandes mestres budistas, de imensa realização. As dicas que dou, para aqueles que querem saber mais, são: 1) busque um centro budista na sua cidade, na capital do seu estado ou na sua região — hoje em dia temos alguns espalhados pelo Brasil — e lá peça conselho. Ou 2) siga sua intuição: vá a uma boa livraria, que tenha uma parte do seu acervo dedicado às questões espirituais, e veja qual livro fala com você — comigo nunca falha. Um livro que marcou época e que transformou minha maneira de ser é o de Sogyal Rinpoche: The Tibetan Book of Living and Dying.

[5] Para conhecer mais sobre esse fabuloso mundo vegetal, sugiro a leitura de Stefano Mancuso: Revolução das Plantas(2019).